quarta-feira, 26 de março de 2014

As verdades por trás das verdades


2014 é um ano histórico. Há cinquenta anos atrás, no mês de março, o Brasil começava a viver o que ficaria conhecido como Golpe Militar de 1964. As questões que cercam esse momento são várias e envolvem não só ideologias, mas também muito sentimento, o que prejudica a análise dos fatos. Assim, para entender como chegamos até esse ponto, é preciso voltar um pouco mais, nas primeiras tentativas de tomada do poder por grupos de esquerda.

Intentona Comunista 

Esse foi o primeiro levante comunista de que sem tem registro no Brasil. Através dele, militantes da Aliança Nacional Libertadora buscavam tomar o poder durante o governo de Getúlio Vargas, em meados de 1935. O cenário da época era delicado.Vargas havia ascendido através da Revolução de 1930, que nada mais foi do que um golpe de Estado, já que invalidou a Constituição de 1891 e levou ao poder um candidato derrotado nas eleições presidenciais. Porém, foi nesse período que o país se libertou da política "Café com Leite", que mantinha o Estado na mão das oligarquias. Mas, nem tudo eram flores. Nas palavras de Ives Bezerra, em sua obra 1935 - Setenta Anos Depois, "a insurreição militar e comunista de 1935 ocorreu dentro de um contexto nacional no qual se destacavam a insatisfação popular com os rumos do governo Vargas, a crise econômica, a desilusão com as prometidas reformas políticas e a preocupação dos setores progressistas com o crescimento do integralismo. O Partido Comunista do Brasil vivia uma fase ufanista, na qual superestimava-se a mobilização popular da Aliança Nacional Libertadora, como se fosse exclusiva do partido". O resultado disso foi uma tentativa frustrada de golpe comunista que teve como consequência imediata a criação do Estado Novo. Não cabe no momento discutir as características do modelo de gestão utilizado por Vargas, que também tinha inclinações claramente ditatoriais, mas é preciso ponderar se teria sido melhor, naquele momento, uma gestão comunista. 

Após 1945

Curiosamente, Vargas foi levado pelos militares ao poder em 1930 para conter um avanço comunista e logo depois, em 1945, foi deposto por militares porque se afinizou com o nazifascismo praticado por Alemanha e Itália. O mundo após a Segunda Guerra estava dividido entre duas fortes ideologias que ainda hoje arrebanham adeptos: o Capitalismo e o Socialismo. Em meio a esse turbilhão de sentimentos e com o mundo se recuperando dos horrores do combate, uma sequencia de fatos surgiu para colocar ainda mais lenha no fogo. A vitória de Mao na China, em 1949, o ataque comunista à Coreia do Sul em 1950, a transformação de países europeus em repúblicas populares, a invasão do Tibet em 1950, a divisão do Vietnã em 1954, a construção do muro de Berlim em 1961, a Guerra do Vietnã em 1961, o envio de misseis soviéticos para Cuba em 1962, o fracasso da resistência Húngara, a Primavera de Praga, em 1968 e todas as guerrilhas que se instalaram na América Latina naquele período. Embebido nessas fortes tendências de esquerda, novamente o Brasil viveu um período de efervescência política que gerou o golpe em 1964. Alguns estudiosos afirmam que a inexperiência do então presidente João Goulart aliada à todas as incertezas desse período conturbado acabaram por conduzir os militares ao poder. Na visão da direita, a intervenção foi um contra-golpe para impedir a ascensão comunista pleiteada na Guerrilha do Araguaia. Já os contrários ao Regime afirmam que foi uma medida buscada pela elite temerosa sobre as reformas propostas por Jango. Entretanto, verdade seja dita: após o golpe ninguém da esquerda lutou para restaurar o governo de João Goulart, e sim para estabelecer um outro regime, também autoritário, e talvez pior que o já instalado.

Milagre Econômico

Um dos argumentos mais utilizados pelos defensores do Regime Militar é o chamado "milagre econômico" existente entre os anos de 1969 e 1973. O que muitos ignoram é que esse crescimento e fortalecimento da economia começou lá atrás, em 1930, quando Vargas priorizou a indústria de base e fez do Estado um investidor onde o capital privado era insuficiente. Em 1939, o governo apresentou um Plano Quinquenal para alavancar o desenvolvimento, investindo em uma usina de aço, uma fábrica de aviões, uma fábrica de motores e a Hidrelétrica de Paulo Afonso. Em seguida, veio a criação da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), da Companhia Vale do Rio Doce, atuando na extração de minérios, e da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, fundamentais para a produção siderúrgica e energética. Aqui surgiram os alicerces do crescimento econômico, a modernização da indústria e também os problemas, como a migração para as cidades e o aumento do operariado oprimido por sindicatos que nada faziam além de seguir ordens do governo. 

Já na gestão de Juscelino Kubitschek, entre 1956 e 1961, o crescimento acelerado custeado pelo financiamento do FMI tornou o Brasil um grande devedor assolado pela inflação. Jânio Quadros não pode resolver o problema e renunciou, entregando uma bomba política, social e econômica à João Goulart. Preocupado com as reformas e com a distribuição de renda, porém sem experiência para realizar uma coisa ou outra, Jango atraiu o medo da elite que, por sua vez, apoiou o golpe.

Os militares, buscando uma solução para a economia, criaram o Plano de Ação Econômica do Governo, que tinha como objetivos as reformas econômicas e o investindo na indústria, de modo a alcançar a estabilidade. Emilio Médici, que assumiu em 1969, colheu os frutos desse crescimento econômico e durante seu mandato, o país chegou a crescer mais de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) ao ano. Porém, apesar de gerar milhões de empregos, a concentração de renda cresceu e elevou o abismo social, já que grande parte da população não desfrutava desse ‘milagre’ da economia. Com a abertura para o capital estrangeiro, o país continuou a contrair dívidas externas que, com as obras faraônicas, cresceram de forma galopante fazendo desse período um mar de contrastes e ambiguidade político-econômica.

Repressão

O conflito entre idéias muitas vezes gera efeitos negativos, principalmente quando o que está em jogo é o poder. O Brasil do Regime Militar vinha de um período em que os Direitos Humanos eram duramente desrespeitados, chegando a ser banal a prática da tortura com presos comuns desde os primórdios da República. Porém, quando essa tortura passou a ser utilizada contra presos políticos, a situação mudou. Num Estado onde o Executivo é "ampliado" e se sobrepõe aos demais poderes, há o risco dos excessos e do descontrole. A repressão foi sendo construída a passos largos, fortalecida a cada novo Ato Institucional até culminar na suspensão de todas as liberdades democráticas. Ora, as pessoas confiavam nos militares para restaurar a ordem, e não para afastarem dos brasileiros o sonho da democracia. Havia uma Constituição votada pelo Congresso em 1967 e o país caminhava para a liberdade. O AI-5 pegou a todos, civis e militantes, de surpresa. Foi uma decisão desastrada e precipitada que só demonstrou uma coisa: os militares não queriam deixar o poder. Depois disso, as torturas já conhecidas foram ainda mais utilizadas contra qualquer um que se manifestasse contrário ao modelo vigente. Nesse contexto, militantes foram perseguidos, mas também pessoas comuns, que nada tinham contra direita ou esquerda e que tiveram suas vidas aniquiladas pela mão do Estado. Obviamente os militantes cometeram inúmeros abusos, já que também queriam o poder e atropelariam qualquer obstáculo (ou vida) para tanto, mas nada se compara à força avassaladora de um Estado armado e articulado para matar em nome da paz, da ordem e do progresso. Ninguém sabe ao certo quantas vidas (entre civis, militares e militantes) foram ceifadas nesse período, já que muitas provas foram destruídas por ambos os lados. Porém, uma coisa é certa: foi um momento negro, de sofrimentos inimagináveis e que jamais será esquecido ou deturpado, ainda que alguns saudosos teimem em glorificá-lo.

Anistia x Comissão da Verdade

A Anistia é para um ou para todos? É perdão ou é esquecimento? Duas perguntas que geram um mar de possibilidades. Nas palavras do ministro Célio Borja, a Lei da Anistia é um instrumento de pacificação, já que seria impossível a sociedade prosseguir sem esquecer todas as obscuridades, tanto da direita quanto da esquerda. O arquiteto Percival Puggina também concorda com esse posicionamento. Para ele, a Anistia é necessária porque possibilita a ruptura com um passado negro e cria uma expectativa de futuro melhor para todos. Porém, esquecer é mais fácil para os torturadores do que para os torturados e as vítimas, mesmo décadas depois, ainda buscam respostas. Alguns consideram essas pessoas militantes esquerdistas ávidos por uma indenização do Estado. Outros já às encaram como vítimas, sejam militantes ou cidadãos confundidos com militantes, e que foram duramente torturados em busca de uma verdade que nem sempre existia. E para buscar essas respostas, o STF permitiu que fosse criada em 2012 a Comissão Nacional da Verdade. Porém, apesar de sua intenção nobre, a Comissão trouxe consigo uma polêmica: se houve excessos dos dois lados, por que os crimes cometidos pelos militantes não são investigados? É notório que dada a força repressiva do Estado as torturas foram bem maiores por parte do governo. Porém, negar os crimes da parte contrária é reforçar a imagem de agressores sanguinários que os militares já tem. E o que fazer? É um tema delicado que exige estudo, documentos e fatos, mas é incontestável que a Comissão da Verdade, na forma como foi estruturada, é um golpe certeiro na Lei da Anistia.  

Conclusões, opiniões e afins

O Regime Militar ainda hoje é aclamado por uns e condenado por outros, já que foi um período de crescimento econômico, mas também de endividamento, intensa desigualdade social e dura repressão. Apesar disso, a efervescência cultural gerada pelo conflito de ideologias causou uma explosão cultural expressa nos festivais de música. Grandes nomes da música popular brasileira ascenderam nessa época e a população, mais crítica e participativa politicamente,  protagonizou belos episódios de luta pela democracia. 

Foi um momento negro, de excessos e perseguições de ambos os lados e, justamente por isso, a Anistia veio para que o passado fosse superado, mas não esquecido. A questão é: como fazer justiça às vítimas sem investigar o que aconteceu? Sem remoer esse passado sórdido de dor e cerceamento de direitos? Será que a busca das respostas justifica um julgamento de exceção? Ou será que a verdade deve ser alcançada a todo custo? Esse conceito maquiavélico de que os fins justificam os meios pode perfeitamente se encaixar aqui, já que para alcançar o fim, que era impedir um golpe de esquerda, os militares usaram o meio, que era a repressão e a tortura. Da mesma forma, as vítimas se sentem no direito de usar o meio, que é a Comissão da Verdade, para alcançar o fim, que é a vingança contra seus algozes. Quem está certo? Não há como responder...

Fato é que hoje o Brasil vive uma ditadura velada, perniciosa e crescente, que se apoia na ignorância da população para tomar força. O PT tinha um discurso inovador e apaixonante, porém, ao alcançar o poder, se mostrou tão corrupto quanto os governos anteriores, além de usar as mesmas fórmulas que antes combatia. A realidade é essa: quem está no poder quer se manter no poder e vai buscar meios para isso. O meio dos militares era a força e o do PT é, nos dizeres de Puggina, "uma versão popular do mensalão". 

Por falar do mensalão, nada provoca mais vergonha no brasileiro do que a forma como a Ação Penal n° 470 terminou. Considerado por militantes um julgamento de exceção, pois não permitiu a defesa dos acusados, mesmo com anos de tramitação e uso de todos os recursos possíveis, a Ação terminou com uma condenação miserável, de penas ínfimas diante do estrago causado. Além da corrupção continuar sendo vista como algo banal e aceitável, a fé no Judiciário ficou ainda mais prejudicada.

Diante dos desmandos de políticos amorais, a população se organizou através do único meio livre de circulação de ideias, que é a web, e foi às ruas em junho de 2013. Uma resposta à altura da agressão, mas em vez de buscar meios para atender às queixas, a corja estuda medidas legais para cercear os protestos e "regulamentar" o serviço de comunicação via Internet. Sei que a princípio o Marco Civil da Internet foi uma ideia inovadora e que visava trazer mais segurança para os usuários da rede. Mas da forma como foi aprovado pela Câmara, vai sobrecarregar ainda mais o Judiciário com questões que antes eram resolvidas pelos próprios provedores, gerando como consequência direta um "engessamento" da Internet. E engessar a rede é tudo que o governo quer, já que estamos em ano de eleições, de copa e... de protestos. 

O projeto ainda passará pela análise do Senado e pode ser modificado, aprovado ou vetado. Muitos comemoram essa primeira aprovação como algo apenas positivo. Sim, pode ser positivo, mas dá brechas para intervenções que ainda não estão claras, o que também é perigoso. E o fato do Projeto ter surgido em 2009 e ser levado às pressas para votação apenas entre 2013 e 2014 é no mínimo curioso. Certo é que há muitos interesses por trás desse Marco Civil, tanto dos provedores quanto das empresas que utilizam a rede, dos internautas e claro, do governo. Com tantas facetas a serem analisadas, o mínimo que será necessário é cautela e agora cabe ao povo cobrar, esperar e cobrar.

A aproximação entre Brasil e regimes de esquerda, caracterizada pela construção do porto de Muriel, em Cuba, pelo apoio às arbitrariedades do governo de Maduro e pela possível parceria com a Rússia para a venda de armamento é outro ponto preocupante do atual governo. Ainda mais agora, que o mundo fala em sansões à Rússia por causa da recente anexação da Crimeia! É um cenário confuso e assustador que traz à tona os velhos medos presentes na Guerra Fria. Aliás, a Guerra Fria não passou. Ela estava apenas em estado de latência e agora parece começar a tomar forma. Há rumores de um novo grande conflito se aproximando e, com toda a tecnologia de hoje, as previsões não são as melhores caso isso ocorra. Mas enfim, são cenas para outros capítulos que, queira Deus, não serão escritos com sangue.

No meio desse mar de informações e insatisfações, há quem busque nas Forças Armadas uma salvação. Sinceramente, não sei se essa escolha seria viável, já que o inimigo hoje é outro, muito mais articulado e protegido. Ele não tem cara, cor ou bandeira e está presente em todos os setores da sociedade, até mesmo no poder. Com sua teia de influências, ele rouba e mata, sucateando o sistema para se manter no controle. Apesar de ser tão indeterminado, esse inimigo tem nome: corrupção. E combater esse monstro não é tarefa fácil. Não há receitas, porque até quem se dizia "remédio" acabou fazendo parte da "doença". É como um Midas às avessas, que em vez de produzir ouro, destrói tudo que toca. Qual é a solução? Militares? Socialismo, Golpe? Nada disso é certo, embora não seja impossível. Para ver as consequências de cada uma dessas escolhas, basta olhar o passado. Justamento por isso ele não pode ser rotulado, generalizado, atenuado ou esquecido. E só assim, vigilante, participativo e despido de fanatismos ideológicos, o povo brasileiro poderá, enfim, escolher o melhor caminho.

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